segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Nêga

Negras sempre fomos, como todo homem, que por ser homem, veio da África. E mais ainda por ser mulher. E a nós é pedida a macheza necessária de se ter uma bunda e andar com ela por aí, nas igrejas, nos supermercados, nas escolas, nas rodas. Porque as negras, desde meninas, tem se destinado a saciar fomes que não suas. Dos parentes e dos patrões.
O riso ambíguo poderia ser um sinal de nervosismo, de tensão, ou poderia ser mesmo um riso, um deboche diante de toda a merda em que todos eles se convertem, principalmente sobre os altares em que sobem declarando publicamente que um dia irão mentir e trair. Não a traição que conheceram com a posse, o alicerce da pátria, da família e da propriedade e que eu tão somente chamo de infidelidade, independente de partido ou desejo. Cometerão a traição que é anterior ao nome de Judas, que fez jus ao livre arbítrio e não a cometeu: a traição da própria liberdade, da liberdade de trair. Porque nada se deveria esperar do que ainda não está pronto e que se faz como tudo, no decorrer das coisas e dos afetos. Ou também poderia ser o gosto do amor das novelas, parecido com emulsão de Scott e sola de chinelo. Ao lado de uma colher enorme há sempre um chinelo. E me dizem sorrindo para que eu engula sem fazer cara feia, mesmo que vomite depois. E porque foi inventado o amor, também se tornou necessário amar os cães. Eles permitem que acreditemos em nossa capacidade de amar.
E por ser frágil a capacidade de amor dos homens, em sua maioria, não confiam em gatos. São traiçoeiros, dizem. Digo eu que não conheço dos gatos nada além do que um misto de preguiça e tédio que sinto diante da TV e que me leva a espreguiçar alongando a necessidade de conforto na luxúria que vem se deitar comigo todas as madrugadas, vendo ou não a lua. E da fogueira, a que espera por toda mulher que se preste a conviver com gatos. Um jardim! Mesmo em janela, ou nas páginas de um livro, um jardim me faria feliz se eu fosse gato. Nada seria necessário além de água, um lugar confortável, telhados e o vaso com a erva que é a minha amiga e legal. Sexo, comida e diversão sempre há. Os homens consideram os gatos traiçoeiros porque eles não se traem.
Era chato. Barulhento, se mijava todo e no pé da gente de tanta excitação por uma impossibilidade de amor. E todos os dias eram assim, enquanto vivesse. Naquela hora ele lhe demonstraria com a urina a sua dependência. Qual era a coleira, a corrente que os haviam unido? Não a via, embora sentisse o seu peso sobre o peito, como as rédeas dos louros, cavalos prisioneiros da investigação humana e do seu desejo de amar e proteger os bichos. Sinto-me culpada porque também os amo e a eles dei cenouras e trancei em suas crinas a minha vontade de liberdade e de vento. Eu, os cavalos e os cães.
Folhas se soltando de diferentes troncos e se entrosando no chão, onde tudo se encontra para acolher o que for de brotar, a vida que sempre nasce, mesmo quando já estamos mortos.
Às vezes ainda ouço a dor do cão, morto pelas minhas mãos. Teria sido mais fácil amá-lo vivo? Porque estando morto, conservo o último momento, o descontrole do afeto, desse desejo de ser mais que gota, gota com seu gosto. E nunca mais deixei de enxergar a fragilidade de tudo diante do meu desejo de dar amor. Porque o amor da gente devora o outro.
Felina, sou mulher. E negra. E por isso, minha carne veio barato, somente à custa de humilhações e agravos acumulados durante os séculos, mas nada que impedisse um negro, que me instruía na sabedoria dos negros, de dizer: que delícia, assim até eu vou querer um pedaço. E pergunto: pedaço do que? Da ofensa ou da decepção? E em alguns momentos os homens se tornam cegos, não podem nos ver. Perdidos que são na construção de uma mulher feita por cosméticos e dietas, não poderiam lidar com uma mulher que caminha livremente, sem mão de dono que a conduza e que, mesmo em sua timidez de carne entre famintos, não se preserva nas páginas das folhinhas e delas não segue receitas, nem de bons modos, nem de bolo e nem de sexo.
E se nos homens brancos ainda existe o olhar de sinhozinho, nos homens negros ainda há o arroubo do reprodutor e a ele também se deve agradecer por não faltarem braços e meninas ao patrão da vez.
E por isso sigo incompleta, porque desejo um homem que seja capaz de me comer inteira e não aos pedaços. A minha bunda é só uma parte de um corpo que é só uma parte de mim. A parte com prazo de validade. E isso já seria motivo mais que suficiente para que eu não faça reservas e me deixe devorar sem restrições. A todos que têm fome de mim, me dou, aos que têm paladar e estômago para conhecer meu gosto, pertenço. Comer todos podem. Digerir, só alguns.
Minha doçura é veneno e o que em mim foi sustento intoxica quem com a boca me feriu. Carne de peixe e cobra que poucos conseguem comer e gozar em seu gosto porque o gosto das coisas é muito além do que foi imaginado. E de mim não dou pedaço a ninguém e quem tem direito não pede, só toca, desfazendo o intransponível de mim, o que não mais existe mais. E nem mim existe. Nem eu. Só o que há é o respirar das coisas, o arfar do gato, dormindo por três dias, depois de quatro sem que dele se tivesse notícia além de que a Lua se mostrava inteira. O sono profundo após noites seguidas existindo. Sendo, os gatos têm muito mais do que sete vidas. E que pedaço de um gato seria pedido por quem o desejasse?
Eu quero o pedaço da leveza e com ele transitar pelo ordinário das coisas sem sofrer por não ter a surpresa de que hoje não sejam melhores do que foram ontem. Mas tudo só é o que sua espécie e seus sonhos lhe permitem ser. Os homens são os homens e os limites dos homens são os limites dos homens e, se não pode ser ofensa o desejo do homem, ofensa é sua fraqueza, a sua digestão delicada da realidade da vida. E se o comum de tudo não é motivo para que ninguém se ofenda, por que ofenderiam ao deus masculino os pecados das mulheres? O pecado de não se saciarem apenas com um pênis e que delas, seu filho homem, tivesse conhecido a entrega.
A mim encantam os pênis. Mas nenhum conheci rijo e vigoroso o suficiente para que meu mundo se alicerçasse sobre ele. Não podem suster a si mesmos sozinhos e para sua glória surge a indústria com os produtos de carne e osso. E venderiam suas filhas por este prazer. Decotes e fendas, chicotes e máscaras, o sorrateiro e todas as sombras que lhes impeçam olhar atentamente e reconhecer, no mesmo rosto de mulher, as três tecelãs, a puta, a mãe e a santa, a que só passou a existir por que as puta também parem e seus filhos tendem a ser governantes. E necessitam dos entretenimentos eróticos, corpos femininos, imagens e tudo o que lhes possibilite a contemplação do falo por que, no dia-a-dia, nenhum deles sustentaria um dizer, em força e virilidade, ao lado de uma mulher. Todos se mostram, inevitavelmente, sem máscaras, com seus 12 anos, talvez ainda por completar. Precisam pular aqui e ali, se afirmar, se impor e, pra isso, precisam de muito, em muitas, para que não se confrontem com o tão pouco que têm a oferecer.
Não sou feminista e também concluo que meu melhor movimento é sem dúvida o de quadril, por que o que sou é mulher, um desejo sem destino certo, mas com a intensidade de toda força que é criadora, e me derreto inteira pela poesia dos cafajestes. E movendo o quadril, os atinjo com o pé e digo que só o que existe é o ainda não inventado. O resto se torna os próprios homens.
E por isso crio e recrio. E dos modelos poucos se conservam inteiros, todos muito frágeis como seus pênis, testículos e imaginação. E só por ser mulher posso ser lagoa e os recebo, aberta. Os acolho e me deixo penetrar por seus pedaços com que procuro construir um homem inteiro, a espera de admirar sua força e seu caráter. E creia, não sou má e verdadeiramente sinto e lamento que pelo vislumbre de limite, pela forma do corpo não contenham seu desejo e se afoguem, ainda no raso de mim. Cachorro que engole osso...
E nade quem sabe a procura de saída porque o mundo habitado pelos homens se torna cada vez menor.

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