quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Amor


Adélia Prado
A formosura do teu rosto obriga-me e não ouso em tua presença ou à tua simples lembrança recusar-me ao esmero de permanecer contemplável. Quisera olhar fixamente a tua cara, como fazem comigo soldados e choferes de ônibus. Mas não tenho coragem, olho só tua mão, a unha polida olho, olho, olho e é quanto basta pra alimentar fogo, mel e veneno deste amor incansável que tudo rói e banha e torna apetecível: caieiras, desembocaduras de desgostos, idéia de morte, gripe, vestido, sapatos, aquela tarde de sábado, esta que morre agora antes da mesa pacífica: ovos cozidos, tomates, fome dos ângulos duros de tua cara de estátua. Recolho tamancos, flauta, molho de flores, resinas, rispidez de teu lábio que suporto com dor e mais retábulos, faca, tudo serve e é estilete, lâmina encostada em teu peito. Fala. Fala sem orgulho ou medo que à força de pensar em mim sonhou comigo e passou um dia esquisito, o coração em sobressaltos à campainha da porta, disposto à benignidade, ao ridículo, à doçura. Fala. Nem é preciso que o amor seja a palavra. "Penso em você" - me diz e estancarei os féretros, tão grande é minha paixão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

passadas luas